terça-feira, 27 de setembro de 2011

Entrevista a Lívio Oliveira

L.O. Jairo, como se definiram suas escolhas pela literatura e pela publicidade? Você poderia nos explicar sobre os fatos, influências externas e íntimas, traçando uma cronologia desse caminho?
J.L. A literatura nasce ainda na infância, 7, 8 anos de idade, com Monteiro Lobato na pequena biblioteca de nossa casa – nesse tempo toda casa que se prezasse tinha uma estante na sala com o Tesouro da Juventude, os Clássicos Jackson em 41 volumes e a obra completa de Humberto de Campos. Meu pai, entretanto, devotara uma sala inteira, à frente da sala de visitas, aos livros e à máquina de escrever, esta sobre um birô. Assim, ali se consagrava, como num templo, os ofícios de ler e escrever. E foi aí, nesta salinha, ou biblioteca, se quiserem, onde tenho o encontro fundamental de minha vida com a poesia de Dante Alighieri, que li em italiano – neste tempo estudava-se latim e isto me ajudou – esmagado, encantado, solfejando quase aquele encontro entre música e palavra, ou ainda aquelas palavras que se espiralavam em volutas musicais poderosas que eu recitava baixinho, para mim mesmo, ouvindo maravilhado a minha própria voz. Tinha 12 anos então e firmava um compromisso com a Arte, para a vida inteira, que logo em seguida se reforçava com a chegada em Arcoverde da biblioteca do SESC – meu pai era comerciário – este, sim, um templo dedicado ao culto público da Beleza e que contava, ainda, com uma sacerdotisa, Selene Pacheco, a primeira bibliotecária que conheci. Selene teve uma importância enorme na orientação das minhas primeiras letras e acho que nunca percebeu realmente a importância do seu trabalho na minha vida. Publicidade veio bem depois, aos 25 anos, após cometer muita poesia e me lançar como dramaturgo com uma peça chamada Mas Livrai-nos do Mal, que fez muito sucesso no Recife e cidades do interior de Pernambuco, além das capitais do Nordeste e uma apresentação no Rio de Janeiro, no Festival Nacional de Teatro de Estudantes. Neste tempo era bancário e comecei a ganhar mais dinheiro com direitos autorais de minha primeira peça do que no banco. Daí decorreu naturalmente a idéia de “viver destas coisas” e veio a publicidade. Nada mais que um jeito de ganhar dinheiro com o ofício de escrever. Foi assim.

L.O. Você considera [o escritor Affonso Romano assim o faz] a publicidade como uma forma de arte?
J.L. Não. Definitivamente não. A publicidade articula elementos do discurso artístico mas difere da arte em sua própria natureza intrínseca de manifesto semiológico subalterno ideologicamente à expressão unívoca de um postulado comercial. É da essência da arte a polissemia, pois ela é sempre a procura de uma congenialidade com o fruidor, que se manifesta através de uma arquitetura complexa, em palimpsesto, onde os diversos níveis de interpretação se adensam na proporção em que a experiência de fruição se repete, incorporando ao discurso elementos expressivos oriundos ao mesmo tempo do emissor e do receptor. A arte, portanto, “vende” a própria natureza cegante, inquieta e irreprimível da sua forma, estabelecendo uma articulação que parece sempre provisória, embora incoercível, entre os seus elementos em permanente ebulição. A publicidade vende políticos e salsichas.

L.O. Por falar nisso, qual a sua concepção de arte? Que elementos compõem esse conceito? O que diferencia, por exemplo, a arte do artesanato?
J.L. Ao invés de propor uma sempre incompleta e insuficiente definição, vou tentar balizar os contornos do que, na minha opinião, representa a arte. Parece-me que, diante da arte, a primeira coisa que percebemos é que ela exige, de quem a produz e de quem a contempla, uma habilitação especial. Da qual decorre, necessariamente, uma habilidade única, irrepetível, uma experiência autoral que se estabelece a partir de uma marca congênita única e inseparável do seu criador. A arte é, portanto, um espaço de contemplação, já que ela jamais é interativa, pois não tolera qualquer intromissão na sua forma sem que esta mesma forma se desarticule de imediato perdendo os elementos autogênicos a que me referi. Quando você retira um elemento de um manifesto artístico e o remonta, você tem ou um kitsch ou uma outra obra de arte que tem do manifesto original apenas os elementos intercambiáveis, como tema, textura, representação ou peripécia. Por esta razão ninguém pode dizer que conhece um livro porque assistiu um filme baseado na história nele descrita. Ou que fruiu Mozart porque ouviu o tema do seu sobre-humano concerto para trompa arranjado por um tecladista na festinha de aniversário do seu filho.
Disso decorre, quer me parecer, que na experiência artística há um fosso intransponível entre palco e platéia, pois não é dado a quem assiste reproduzir o que diante dele se desvela. Ou você já ouviu uma platéia cantando a ária Caro Nome (Rigolleto), de Verdi, com suas inacreditáveis exigências de performance vocal, junto com a cantora no palco? Ou o público dançando o supremo pas de deux do Quebra Nozes, junto com os bailarinos? Entretanto, crianças e adultos infantilizados participando e interagindo de instalações nas bienais, disso o mundo está cheio. O lúdico é a palavra-chave deste universo mercantilizado da cultura pop.
A razão disto, deixe-me dizer, Lívio, é que a arte é, junto com a religião, uma técnica de remineralização de significantes, tendo como objetivo deter o processo destruidor da entropia que conduz tudo à indiferença. A religião articula esta transformação através da imposição sacramental de uma autoridade metafísica – Duchamp tentou fazer isso com um urinol e deu a merda que deu – enquanto o artista o faz a partir da construção de um objeto cultural.
Ou seja, um objeto religioso é um elemento natural que se torna único através de um discurso que afirma e consagra a sua unicidade através de um pacto entre o emissor e o receptor. A religião escolhe e elege. A arte cria.
Então, gente, a arte é irreplicável, pois toda tentativa de interagir com o objeto artístico resulta em kitsch – que não dá tempo de examinar aqui – ou no outro.
Ora, o artesanto é a replicabilidade, dos tapetes persas à renda de bilros. A mão do artesão é conduzida pelo atavismo, e sua habilidade é reprodutiva, social, pois se dá dentro da mitosfera. Já a arte opera contra a mitosfera, é produtiva, individual, remineralizadora, rebelde e incorformada EM SUA ESSÊNCIA.
Foi porisso, camarada, que a flexibilização do cânone e sua “democratização” ao longo do século passado e deste, gerou uma porrada de artistas, quase um para cada habitante do planeta, mas muito pouca arte. Tá como é.

L.O. A arte está em crise? Qual a “ética da estética”?
J.L. A arte é a crise. Como falei acima, a arte é o que opõe, inquieta, repõe, revê, revoluciona, nega, incomoda. Tudo mais é entretenimento, diversão. A arte nasce da mesma pergunta que fundou a ética: isso é bom? Portanto, toda arte é relativa ao homem, e a nada mais, seus protocolos não são absolutos nem universalmente verificáveis já que decorrem de uma consciência baseada no saber, mas também na vontade, esta cambiante e auto-reflexiva. Ora, o bom, assim como o belo, expressa um ponto de vista circunstancial e humano. Certamente, do ponto de vista do pavão, a insossa pavoa é a própria essência da beleza, pois representa o bem para ele; para nós, a bicha não tem a menor graça, ofuscada por aquela explosão de cores em triunfo da cauda do seu parceiro sexual.
Acho também, Lívio, que a gente sempre confunde a linha da tecnologia com a da arte, conferindo à contemporaneidade um valor em si mesmo que não se observa na produção artística. Em nossa cultura, por exemplo, a linha da tecnologia, desde o primeiro machado de pedra até hoje traça um continuum inalterável de atualizações positivas. Com a arte nunca foi assim. Ela parece estar bem representada no mito de Sísifo, aquele da pedra conduzida até o topo da montanha e que depois rola ladeira abaixo. Assim, começando por uma proposição primitiva a pedra/arte se eleva até um grande momento clássico, que é sempre um momento de equilíbrio, pois planos são os cimos; em seguida, a arte, encantada de suas próprias alturas, quer se eternizar naquela particular forma e vira maneirismo: a pedra rola montanha abaixo até encontrar de novo o chão primitivo do vale de onde, com grande esforço, começa de novo a escalar o monte... até o próximo neo-classicismo ou que se queira chamar a este tensionar/distensionar eterno do fazer artístico.

L.O. Arte e cultura se distanciam e se aproximam em quais momentos?
J.L. Uma se contém na outra. A arte é uma pequena parte da cultura que é formada, na verdade, pela grande massa mitológica que aglutina e media o conjunto de crenças humanas. Estas usinas do mito são a política, a ciência, a religião, e a arte. Por isso, Lívio, não deveriam haver ministérios nem secretaria da cultura, porque isto é uma grande asneira que significa tudo, e, por conseqüência, nada; já a arte, esta sim precisa de um mecenato, seja privado ou público, para existir. O problema é que cultura dá voto. Arte só dá problema, como qualquer ditadorzinho do passado ou do presente poderá lhe dizer.

L.O. Jairo, sua produção na dramaturgia sofreu uma pausa. A sua escolha definitiva (no campo literário) é mesmo a poesia?
J.L. Que pausa, Lívio? Acabou, mesmo. Escrevi meu teatro em co-autoria com o censor de plantão, nos tempos da ditadura. Aí, acreditei no mito que o Brasil teria um tesouro de “peças de gaveta” à espera da redemocratização Tinha era besteirol e aí eu pensei: – Sabe de uma coisa? Deixa isso pra lá. Eu vou é fazer poesia.

L.O. Você pode nos traçar um paralelo entre essas duas formas eleitas para a sua produção literária?
J.L. Não têm muito em comum, senão, talvez, o fato de que todas as minhas peças teatrais, foram escritas total ou parcialmente em versos. O que não as faz poéticas. E toda a minha poesia descreve, com minuciosa serenidade, uma tragédia. O que não a torna teatro.

L.O. O seu trabalho com a palavra poética no “Livro das Árias e das Horas” é de um extremo meticuloso que faz transparecer uma lapidação quase que obsessiva da palavra. É isso mesmo?
J.L. Mário Hélio diz que na minha poesia “a imagem encontra a correspondência exata com o ritmo, num jogo de metáforas e assonâncias de tal maneira funcional que a literatura finalmente parece mesmo ser a resolução de um problema matemático, pintura abstrata ou música erudita”.
Para mim um poema tem que se manter em pé pelo mesmo impositivo ético que obriga a calcular com exatidão e segurança o arco dos viadutos.
Digo lá num daqueles poemas:

palavra é pintura e hálito
carne em vento é palavra e pode ser tanto ou como ou alfinete cristal robalo
em infusão no pântano dos significados
estabelecida em tons lunares solares ou estelares
assim elas podem ser ocasos
ou irem ao encontro do inexprimível impacto
que dá músculo sangue e nervo ao vento

“Palavra é pintura e hálito”, ou seja, som e imagem, fundidas numa têmpera tão coerente e densa que não se possa intercalar nem uma réstia de som ou outro ritmo que não seja aquele implacável que se devota a si mesmo na materialidade do poema.

L.O. Parece que você pretende dar continuidade à idéia lançada nessa obra poética. Como você pensa em fazê-lo?
J.L. Tenho um segundo livro pronto e engavetado. Nele, a idéia que esboço no Livro das Árias do papel fundante do discurso poético na construção do ser, sai do mergulho dionisíaco e assume uma contemplação apolínea. Do espaço, o poeta vê a criatura e inventa um criador. É o meu melhor trabalho, por isso não tenho a menor pressa em publicar.

L.O. Jairo, o que definiu a escolha que fez você optar por Natal, deixando a cidade do Recife, tão rica cultural e historicamente?
J.L. A violência pesou muito na minha resolução. Mas, no sentido cultural, acho que Natal vive hoje um surto animador de novos escritores e pensadores, jovens e talentosos, que parecem assegurar para as próximas décadas um espaço privilegiado no país para a literatura e a crítica literária. Pelo grito do Mateus aqui o reisado está bem ensaiado.

L.O. Sei que uma de suas paixões é a música erudita. Inclusive, percebe-se isso até pela escolha do título de seu livro. Que lugar, efetivamente, a música tem na sua vida e em sua obra?
J.L. Penso, como Nietzsche, que sem música a vida seria um equívoco. Mas, quando falo de música falo da música tonal, a maior manifestação de arte da história de todas as culturas humanas. E que nós jogamos no lixo da história porque uma esquerda burra cismou que aquilo representava o poder de dominação do clero retrógrado e da aristocracia. Aí, junto com a água do banho jogaram também o menino pela janela. A música é uma experiência única para a inteligência por ser um sistema de signos não-pactuados, que articula puros significantes oferecendo a mais ampla polissemia alcançada por qualquer linguagem. E que, libertando-se do texto do qual quase sempre é coadjuvante, como na música popular atual, ousou afirmar-se como discurso por seus próprios recursos expressivos.

L.O. O que você tem visto de interessante no atual cenário da literatura brasileira?
J.L. Um pobre sebista jamais pode fazer esta lista. Já pensou se todos os não-citados deixarem de ir a feijoada de sábado na Kriterion? Eu, não, meto a viola no saco e só digo que alguns deles estão aqui mesmo, em Natal.

L.O. Qual caminho você considera que deve ser percorrido pelos novos escritores para que possam se inserir, com consistência e boa (e perene) repercussão, nessa cena?
J.L. Olha, não me interesso por livros, mas por obras. Por isso não dou conselho a ninguém que não quero ver gente boa morrendo à míngua de leitores por ter seguido meu conselho. Arte não vende. Viva a arte. E aos que produzem mercadoria literária não tenho nada a dizer, só que eles deveriam estar presentes nas editorias econômicas, empresariais, etc, e não nas páginas que, por definição, deveriam analisar e divulgar arte.

L.O. O que constrói o bom escritor? O que o bom escritor constrói?
J.L. Um bom escritor é feito de proteínas, vitaminas, assombrações, sais minerais, epifanias, desconforto com o mundo, leituras, filmes, pinturas, música, muita música, um certo ar aparvalhado, desligado, leso, e uma incoercível vocação para a inutilidade. Com isto ele constrói programas que reformatam os cérebros provocando sensações de vertigem, crosta, alheamento, totalização, estranhamento, leseira, náusea, fuga, mergulho, plenitude, ironias e cansaço com a qual se constroem (bons) leitores e novos escritores. Assim vai o mundo.

L.O. Que escritores e obras merecem sempre uma releitura?
J.L. Se você não tiver tempo de ler nada, mas nada mesmo nesta vida, leia um capítulo de “Os irmãos Karamázovi”, de Dostoievski, chamado “O Cheiro Deletério”; leia “O Alienista”, de Machado: leia os episódios de Francesca da Rimini e do Conde de Ugulino, no Inferno da “Divina Comédia” de Dante; leia o monólogo “Ai que prados de Mágoa”, da Yerma de Garcia Lorca e leia a cena da taverna do “Dom Quixote”. Essa relação é boa porque serve pra preguiçoso, já que só tem que ler um tantinho de cada autor. Mas, fazendo isso, já vai dar pro gasto biográfico de uma vidinha à toa.

L.O. Jairo, da paixão pelos livros – como leitor e escritor – para o trabalho no comércio dos livros, na já famosa Kriterion, vê-se que esse é e será sempre o seu mundo...
J.L. Livro, não, que quem gosta de livro é rato e traça. Arte. Arte literária, musical, pictórica, escultórica, os cambau. Sou um péssimo turista porque a única natureza que me comove é a natureza humana. Nas cidades, desdenho ruas e edifícios e corro para os museus e os teatros. Cenários naturais, só mesmo através de vidro fumé e ar-condicionado. Sou assim e esse jeito de ser não tem jeito. Quanto à Kriterion, minha querida Kriterion, inventei por achar que Rosa, Machado, Kafka, Mann, Dante, Cervantes, Bandeira, Cabral, eu, você, e quem mais queira se achegar, gostaríamos de estar lá. Uns na estante, cheios de prosa e poesia, calados; outros à mesa azul, gesticulando, discutindo, celebrando, maldizendo, sob o olhar implacável do gato de Ademir Martins. E o som e a fúria de uma arte há muito tempo assassinada, tocando baixinho, para encantar e acusar.

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